quinta-feira, junho 27, 2013

Nada será como se possa imaginar


 

Tudo muda a uma velocidade vertiginosa, onde os paladinos da mudança se têm enganado nas suas previsões. Países como o Brasil, onde o chamado crescimento daria para tudo, nos mostram que o crescimento pelo crescimento não é o caminho para a vivência de hoje um objectivo satisfatório. Até em locais do mundo como a China, esse crescimento dá sinais de abrandamento. As últimas manifestações na Turquia são o exemplo de posições bem diferentes entre as políticas com esta base ideológica, apoiada nos sectores que clamam pela velha ordem, a deles claro, que até é apoiada pelos religiosos.

É a fé no novo deus financeiro, desta religião do crescimento para os amanhãs que cantam de diversas formas, quer seja no consumo, quer seja na busca da felicidade financeira, com os seus apóstolos, transmitem a boa nova por todas as vias e meios. Já não irão arrasar os hereges, nem os queimar em autos de fé, mas lançam no fogo da exclusão os tais cerca de 25% que não têm qualquer utilidade ao sistema, com danos colaterais elevados por arrasto na ecologia económica. 

A crise da fé já não é só da religião, é também uma crise de fé do salvífico mercado. Uma crise global de raízes tão profundas que todas as desculpas, desde a financeira, da dívida pública e privada, gorduras e magrezas estatais, despesismos e poupanças, tudo aponta para o engordar de um sistema endeusado que ninguém viu, vê e verá, enquanto os políticos, direi todos sem excepção, apresentam soluções que fingem saber como certeiras, como se fossem a navegar suportados pelo GPS.

Viva a descrença!

Naveguemos à vista, usemos as estrelas como mapa desse livro aberto que a poluição luminosa nos impede de ver.

 

domingo, junho 23, 2013

"O meu é maior que o teu".



 Gernsbach, Alemanha.
A poucos metros um do outro, dois símbolos fálicos ao mesmo deus.
Escrevo com minúsculas, pois foi este deus que foi desculpa para o derramamento de sangue entre irmãos.
Aqui se vê o mostrar e o exibir.
O meu é maior que o teu!
Observem que o prédio da direita de uma foto é o mesmo que o da esquerda da outra.

A lua de S. João

A lua levanta-se sobre os pinhais do Escoural, cheia de luz, a fazer sombra vincada no chão das coisas mundanas que ali estão espetadas do chão, medrosas, a aguardar o sol que virá.
Nasceu baixa, lá para os lados donde nasce o sol nos dias de Natal.
A Lua e o Sol não se entendem, por isso não se encontram.
Masculino e feminino dos Astros.

terça-feira, junho 18, 2013

Propaganda para Tótós

Indices de execução de 33%, orçamentos sistematicamente empolados, etc. Vê onde está o nosso dinheiro! Multiplica isso por vários e muitos concelhos, honrosas exceções para Mealhada e poucos outros, soma a chulices que sabemos, e aí tens a bela gestão de Cantanhede florida, e festiva, golfista e com pavilhões que não existem, já batizados com nome de um antigo dirigente socialista, nomeadamente o de Febres. Tudo propaganda para Tótos, mas da boa, pois nem a 500 metros da fronteira do concelho se sabia da marosca. Não faz mal que os do concelho também não sabem.

Ler aqui: http://issuu.com/concelhiapscantanhede/docs/relat__rio_finan__as_sobre_contas_c
e aqui : http://www.slideshare.net/pscantanhede/relatrio-finanas-sobre-contas-cmara-cnt-1-23192213#

A imprensa de Cantanhede é só para Totós?


Isto será abafado pela   imprensa local?
http://issuu.com/concelhiapscantanhede/docs/relat__rio_finan__as_sobre_contas_c

segunda-feira, junho 17, 2013

Os cidadãos sabem mais do que os génios da economia e da política e temem que venham aí tempos ainda piores.


O Fundo Monetário Internacional está angustiado (ver "Estará a austeridade ferida de morte "). Há agora no Fundo quem considere que a sua receita foi longe de mais. Porém, posso afirmá-lo sem qualquer dúvida, o FMI era, na troika o parceiro mais brando. No momento em que se iniciaram as negociações com Portugal, tanto o BCE como a própria UE surgiram como muito mais radicais na exigência de cortes, reformas e medidas que se podem considerar punitivas. Esta era, pelo menos, a opinião geral dos interlocutores (partidos e sindicatos) ouvidos na altura em que Sócrates terminava os seus dias como primeiro-ministro.
O que se passou de então para cá? Muito e pouco.
Muito, porque ao terem entrado quase todos os países europeus numa fase de austeridade, tornava-se ineficaz, ou mesmo impossível a receita aplicada - a Portugal diziam-lhe para apostar nas exportações, embaratecendo o fator trabalho - mas para onde, se os outros países da Europa, importadores naturais, também cortavam orçamentos? É que (baseio-me em números do eurodeputado Rui Tavares, hoje no 'Público') há quatro anos havia oito países em austeridade, há três anos, havia 16; e há dois eram 21 (dos 27 que a Europa tem). Além disso, os EUA não recuperaram como se previa e a própria China, assim como o Brasil já têm os seus problemas.
Na frente interna, as coisas não podiam melhorar: se aumentavam impostos e cortavam salários, difícil era esperar que os cidadãos consumissem mais. Pelo contrário, pouparam mais, porque os cidadãos, os simples, sabem mais do que os génios da economia e da política e temem que venham aí tempos ainda piores.
Quer isto dizer que está tudo errado e que, afinal, quem tinha razão era Seguro, ou mesmo Jerónimo e Louçã? (Deste último, diga-se que hoje declara ao jornal I que a saída do Euro levava a sacrifícios "equivalentes aos da II Guerra Mundial" - é ele quem o diz e não posso estar mais de acordo). Aparentemente, se o problema está na austeridade excessiva quem é contra a austeridade tem razão. Mas esse é, a meu ver, o paradoxo.
É que, ao mesmo tempo, não se passou nada de especial, salvo uma coisa que muita gente também disse, mas nenhum Governo levou a sério: nós estamos no fim de um modelo; num período de reequilíbrio e, fosse qual fosse a política, jamais haveria confiança necessária dos cidadãos nos agentes políticos, na banca ou noutros agentes económicos para investir, a fim de animar a economia e aumentar o consumo. Por isso, no essencial, quem defende o fim da austeridade, defende que seja o Estado a investir de novo. E isto levanta a dúvida trágica: Não foi esse o modelo que falhou?
Chame-se austeridade, chame-se rigor, vamos passar uns tempos difíceis. Em que há menos dinheiro (ou em que o dinheiro vale menos, nos casos em que estão a ser impressas notas, como nos EUA e no Japão). A diferença entre a economia contabilizada e a economia real (que chegou a ser de um para sete) vai ter de ajustar até à realidade. Quando alguns perguntam - "mas onde está o dinheiro?" - o drama é esse: não havia dinheiro nenhum, ou melhor não havia valor. Um exemplo: à volta de Madrid há bairros fantasmas enormes, acabados de construir. Quanto valem? Bem, depende da expectativa. Agora, não valem nada - eis um dos lugares onde está o dinheiro.
A angústia do FMI é no fundo semelhante aquela música de Ney Matogrosso: "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come". Durante anos, brincámos aos feiticeiros, este é o tempo de percebemos que não passámos de simples aprendizes. A realidade pode estar alienada por uns tempos, mas volta sempre para se impor. E a realidade era esta: havia muito menos riqueza do que aquela que o mundo declarava.
Twitter:@HenriquMonteiro https://twitter.com/HenriquMonteiro                                          Facebook:http://www.facebook.com/pages/Henrique-Monteiro/122751817808469?ref=hl    


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quinta-feira, junho 13, 2013

A última mamada

O palhaço

The last feed, de Paula Rego

Este é um quadro da Paula Rego que esteve exposto em Londres na sua última
exposição (jan-março 2013) 'The Dame with the Goat's Foot'

O 10 de Junho

O 10 de Junho
  
«B lábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblábláblábláblábláblá A magistratura presidencial destina-se a manter a coesão nacional blá blábláblblábláblábláblábláblblá-blábláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblá Não governo nem sou corresponsável pela política do Governobláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblá A agricultura nunca esteve tão bem como nos últimos anos blábláblábláblábláblábláblá- blábláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblá Chego sempre à mesma conclusão: se tivermos uma crise política, os portugueses ficariam muito pior blábláblábláblá.
Bláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblá Estou acima das lutas político-partidárias bláblá- blábláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblábláblábláblábláblá No meu horizonte não está a demissão do actual Governo, pelo menos durante a vigência do programa de assistência financeira blábláblábláblábláblábláblábláblábláblá-bláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblábláblábláblá O relançamento da economia será possível com a expansão do investimento privado e o financiamento às empresas bláblábláblábláblábláblá- blábláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblábláblábláblá-bláblá A demissão do Governo não deve ser feita de ânimo leve. Só em ocasiões muito especiais. Nem mesmo numa situação em que o Presidente perde a confiança no Governo bláblá lábláblábláblá blábláblábláblá- blábláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblá Não comento as declarações do senhor Presidente da República; isso compete aos comentadores blabláblábláblábláblábláblblá- blábláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblábláblábláblá-bláblábláblá Não percebo muito bem o discurso do senhor Presidente. Nem uma só vez se referiu ao desemprego em Portugal bláblábláblá blábláblábláblábláblábláblábláblábláblá- bláblábláblábláblábláblábláblálábláblá-bláblá Aquilo que preocupa os portugueses. Que é a crise, os problemas que os afectam, desemprego, recessão, não tiveram eco, de facto, neste discurso blábláblábláblábláblábláblá- blábláblábláblábláblábláblábláblá-bláblábláblábláblábláblábláblá O senhor Presidente da República teve um discurso muito responsável, muito galvanizador. Foi um Presidente da República da esperança bláblábláblá blábláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblábláblá O Presidente da República saberá, com certeza, os temas que escolhe. Aquilo que nos parece é que faz sentido falar da agricultura, que é um tema muito importante blábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblábláblábláblá-blábláblábláblábláblá Gatunos! Gatunos! Gatunos! Demissão! Demissão! Gosto muito de paradas militares. Por isso cá estou. Mas que estão a fazer aqui estes gajos do Governo, que só têm dado cabo do país? (...) Nobre povo, nação valente (...) Às armas! Às armas!» [DN]
   
Autor:
 
 Baptista Bastos.

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domingo, junho 09, 2013

Fernando Pessoa - Livro do Desassossego (série Grandes Livros).


Tabacaria - Alvaro de Campos (1923) 1/2


TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos

Tabacaria - Alvaro de Campos (1923) 2/2


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos

quinta-feira, junho 06, 2013

Caderno de encargos


Caderno de encargos

Sentimos aquele desconforto na condução do nosso veículo e no pagamento das facturas da oficina, após a abertura e posterior tapamento de rasgo ou vala no pavimento da estrada.

Antigamente até pensava que seria um desígnio divino, mas após conduzir em estradas e ruas de outros países da Europa da qual dizem que fazemos parte, tal não tenho notado, e por lá também abrem e tapam rasgos nos pavimentos.

Talvez seja do caderno de encargos!

Se tal assim for, devo eu concluir que as Câmaras Municipais copiaram o mesmo caderno de encargos umas pelas outras, pois é fadário de todas as estradas dos municípios por onde circulo.

Ou será que já não se fabrica asfalto eleitoral?
 

A mulher do vestido vermelho